top of page

 

Dionisíaco

 

Otavio Frias Filho

 

     O nome parece inventado, de tão bem escolhido. Dionisio Neto vem desdobrando a vitalidade de seu talento por toda a extensão das artes cênicas – teatro, cinema, televisão.

     Ator versátil que aprendeu com Antunes Filho, Gerald Thomas e José Celso Martinez Corrêa, dramaturgo que surpreendeu a cena teatral nos anos 90, diretor que lançou um brilhante elenco de atrizes, não existe desvão nos mistérios do deus grego em que ele não tenha mergulhado. Agora, o neto de um encadernador de livros publica o seu primeiro, uma coletânea de peças teatrais escritas nos últimos vinte anos.

     Os textos ilustram bem a crise – de financiamento, de bilheteria, de repercussão – que se tornou o metatema do teatro, ao mesmo tempo em que ressaltam seu poder de renascer dos escombros para fecundar outras formas de arte. Mas o tom destas peças nem de longe cede à lamentação passadista. Pelo contrário, elas são atravessadas pela celebração frenética, caótica, justamente “dionisíaca” das possibilidades de expressão em cena.

     O autor parece trabalhar em dois níveis. Existe o realismo prosaico do cotidiano, em meio à degradação da metrópole paulistana e às desventuras de amantes que nunca conseguem acertar o passo, criaturas desesperadas em sua fome cósmica de amor. Mas esse registro realista é estraçalhado por explosões de um lirismo mágico, onírico. Nestas passagens, que fazem lembrar a “escrita automática” dos surrealistas, toda lógica fica subvertida e as personagens são arremessadas numa atmosfera de poesia pura, em que ressoam reminiscências da infância do dramaturgo em São Luís do Maranhão.

     Uma avalanche de referências caracteriza a simultaneidade da cultura contemporânea, na qual se amontoam o bumba-meu-boi e a internet, Rimbaud e Darth Vader, budismo e Marlon Brando.  Em meio a esse tumulto, o espectador (e agora o leitor) nunca se sente seguro no conforto do enredo, que permanece aberto nos seus contornos imaginativos até atingir algum desfecho brutal ou perturbador.

     Se todo trabalho artístico tem uma dimensão de ironia, aqui ela se volta contra a indústria da fama, miragem perseguida pelos artistas de todos os tempos e ainda mais fugidia hoje, quando o sucesso parece tão instantâneo quanto passageiro e as exigências do mercado aprisionam a arte como nenhum déspota ou fanático conseguiu no passado. “Tudo vai ser esquecido”, diz um personagem. “Se até os imperadores foram esquecidos, imagina nós!” Enquanto isso, a primavera continua sendo “a coisa mais importante que existe”. 

    

    

  

    

    

    

     

bottom of page