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INTEGRAL

SÍSIFO (transe remix #0)

de Dionisio Neto

 

 

 

 

personagens

SÍSIFO

JANAÍNA

O ANIMAL

MULTI–INSTRUMENTISTA

DANÇARINA

CANTORA

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

ATO ÚNICO

(O cenário é uma floresta artificial. Há um letreiro eletrônico onde serão escritos os nomes dos personagens e suas respectivas cenas. Há uma escada. Um multi–instrumentista toca a trilha para cada personagem. A cantora e a dançarina contracenarão com os atores. Há um telão onde serão projetadas imagens que dialoguem com a cena.)

 

Cena 1

 

LETREIRO: zero. [Do ár. sifr, ´vazio`, do lat. medieval zephyrum, pelo it. zero e pelo fr. zéro.] Num. 1. Cardinal dos conjuntos vazios. S.m. 2. Algarismo representativo do número zero (0). 3. Alg. Elemento que, somado a outro, reproduz este outro; a identidade da operação de soma. 4. Anál. Mat. Valor da variável que torna nula esta variável. 5. Nota, em prova de exame ou concurso. 6. Ponto em que se principiam a contar os graus, e que corresponde, nalguns termômetros, à temperatura de gelo fundente. 7. Ponto inicial da maioria dos instrumentos de medição. 8. Fig. Pessoa ou coisa sem valor ou préstimo: “Que ilusão viajar! Todo o planeta é zero.” (Antonio Nobre, Só, p. 92.) (Fade–out.)

LETREIRO: O HOMEM

SÍSIFO – (Desce a escada com uma esfera em suas mãos onde está escrito “#0”.) Todo dia é assim. Sou guiado pelo meu estômago até a beira do Rio Vermelho. O Rio Vermelho tem esse nome – Vermelho, mas na verdade é verde, ou azul, até negro, dependendo do tempo. Dizem que ele ficou vermelho no dia da matança. Todo o povoado, exceto eu. Fugi. Tinha treze anos. Ainda penugem na pélvis intacta. Queria chegar até aqui. E esperar o animal. O outro animal. Olhar no fundo dos seus olhos amendoados. Falar com ele sem dizer palavra. Só pelo olhar no olhar. Todo dia é assim. Hoje também é assim. Meu estômago dói, domina meu pensamento. E eu não penso. Quando dou por mim já estou aqui, de tocaia, esperando o animal. Eu não posso perdê–lo de vista. Eu sei que ele vem. O estômago dele também vai doer. Todo dia é assim. Ele também me procura, mas ele não pensa. O estômago dele é maior que seu cérebro. Ele só come. E dorme. E fica parado. E corre. E faz amor. Um amor selvagem. Assassino. Ele devora a fêmea com seus caninos gigantescos. Não saboreia as suas vísceras, apenas engole. Assim ele fica vivo até o outro dia. Há muitas histórias a meu respeito. Esta é uma delas. E será contada e recontada infinitamente, como meu trabalho incessante, o trabalho de Sísifo. Eu sou Sísifo, o mais astuto de todos os mortais. Minha vida é uma repetição sem sentido. O único sentido, se é que há algum, é estar aqui no dia seguinte e começar tudo de novo. Por causa de uma ofensa aos deuses, fui condenado, a levar esta esfera do alto da montanha até embaixo no vale, e quando chegar lá embaixo, subir a esfera até o alto, infinita e repetidamente. No meio do caminho, para minha sobrevivência, terei que matar o animal. O animal não sorri. Mas chora. Chora que eu vi. No dia em que seu filho morreu doente de câncer. Uma ferida nos olhos. Foi crescendo, crescendo, crescendo, até que ele não tinha mais face. Ele só tinha carne viva. Depois carne morta, para o alimento das aves de rapina, e de seus filhotes indefesos. O círculo nietzschiano que não para de girar. Quando parar seca. Vira pó. Eu me sinto mais vivo quando estou perto da morte. A morte está há um passo de distância de qualquer lugar. De mim, de você, de tudo e de todos. A morte nos mantem vivos. É o paradoxo da vida. A minha, a sua, a de todos. Todo dia é assim. Faça vento, faça o vazio preto e branco do teu corpo, o ciclone de fúria, o furacão de círculos polares medievais do norte extremo da Islândia, a tempestade tropical da praia do teu quintal de flores azuladas, ou o tédio da tua inação inabalada. Um animal por dia, às vezes dois, três, quatro, cinco, dependendo de qual estiver ao meu lado, precisando de mim. Hoje só eu estou precisando de mim. Só eu, mas você também porque veio aqui me ver, ficar de tocaia aí nesse escuro confortável e se enxergar no espelho da minha voz, do meu corpo arábico setentrional, dos contornos que teus olhos que não têm sinal nenhum de um câncer corrosivo projeta, ao inverso no teu cérebro desenvolvido e nas veias do teu coração pulsante. Pusilânime. Sem pus. Por mim, por ti, por teus filhos, avós e ancestrais ameríndios, africanos e europeus, japoneses do mundo todo igual a mim e a ti e a todos. Preciso de mim, de ti e do animal. E do fogo, e da pedra, e da água transparente do Rio Vermelho. Assim seguirei até amanhã. E depois e depois de amanhã. E depois e depois de depois de amanhã. Até que meus pulmões sequem, e eu vire alimento para os vermes que também estão de tocaia. Que também precisam dar continuidade a este canto escuro. Que transforma o ar em melodia sã. Que também come e dorme e faz amor selvagem como qualquer um de nós. Que também. Que. AAAAAAAAAAAHHHHHHH!!!!!!! O ronco gutural do meu plexo solar! O grunhido estrondoso das matas impenetráveis. O arrepio das leoas, gazelas e girafas. Os venenos cáusticos das abelhas africanas transformaram minha pele em barro. Não há paz. Essa paisagem deixa a gente louca. Não há mais silêncio. Nem quando o sol toca a linha do horizonte. Nem quando a primeira nuvem de chuva sob a vastidão luminosa do sertão faz seu rastro de sombra geográfica e constrói países escuros e molham, por centésimos de segundo o pó dos cadáveres de lebres rosáceas. Não há paz. Só há o rufar do meu intestino pronto para silenciar com o gosto da carne assada do animal que virá de surpresa, na distração do meu cantar. E tudo voltará a ser cor e sabor e as estrelas brilharão no vasto infinito do meu peito despedaçado. Minha boca saliva. Eu penso no animal e minha boca jorra cachoeiras de cuspe. Haja palavras! Haja pele, veias, coágulos, órgãos, miragens, temperaturas e lã. Haja corpo para tanto vernáculo. Portugal, Macau, Guiné–Bissau, Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde. Timor–Leste, São Tomé e Príncipe. Multidões de homens desconexos, de desejos inversos consumindo a terra, a flora, a fauna e os campos desertos dos meus arredores aquáticos. Tomei três pílulas esta noite. Continuei vivo por mais vinte e quatro horas. O planeta completa o ciclo umbilical e eu recomeço do zero, explicando a ele quem eu sou, qual minha função neste turbilhão miraculoso de excentricidades luzidias. Ainda espero, à espreita, pelo animal que não vem. Incansavelmente, incomensuravelmente. Atento a cada movimento suspeito, desconhecido, à minha frente e aos arredores do meu ser. Eu quero sorrir! Eu quero sorrir! Sorrir e morder a jugular do animal que espero ansioso, sem calma nenhuma, sem conselhos de um zen budista, sem as ervas do xamã amazonense. Não fraquejarei jamais. Nem que minhas pernas amolecam e não sustentem mais meu corpo pesado. Nem que mais um punhal crave sua lâmina de prata nas minhas costas. Sorrateiramente. Com a violência de um rebento infante em sua primeira audição lírica. Na primeira explosão de gostos do interior do Pará em sua boca festiva, sedenta de beijos de uma princesa indiana. Maktub. Ele não veio. Maktub. Maktub. A salvação do meu dia pérfido. Covarde! Quero voltar para a minha rede de fios de seda. Covarde! Quero esconder–me de mim nos lençóis humedecidos com o líquido jocoso do meu pênis ereto. Covarde! Covarde! Mil vezes covarde. Açoito–me. Arranco o punhal de prata e esmeraldas que fincaram hoje, pela manhã, quando eu esperava a alcateia traiçoeira de incontáveis animais raivosos que um dia, um dia como este, na amplidão de falésias movediças, tentaram arrancar–me de mim. Em vão. Pois que eu me escondia em meu próprio redemoinho de ouro. Eu sabia quem eu era e nunca esqueceria do primeiro instante em que epifanias escarlates inundaram a verve celular de tudo o que me compõe. Eu quero rir! Não há paz. Todo dia é assim. Enquanto o animal não chega. Eu lembro de gargalhadas sonoras que proferi aos céus quando me despreocupava na praia. As ondas pisavam em mim. Fitoplânctons fluorescentes por todo meu ser. Micro micas, turmalinas marinhas grudadas nos meus poros. Ação! Ação! Eu convivo com todos os tipos de loucuras. Cada homem traz em si uma loucura única que se manifesta em maior ou menor grau. São todos loucos. Eu, tu, eles, nós, vós eles são todos loucos em alguma hora do dia. Nem que seja nos sonhos. Eu não me assusto mais. Nem com os crocodilos que flutuam em minha frente. Eu não me assusto mais. Todo dia é assim, mas não costumava ser assim. Eu fugi da matança. Embrenhado na mata escura, densa, sem frestas mínimas que permitissem a passagem da luz. Fiquei ali perdições de dias. Imensidões, my friend. Los pajaros se quedaran amigos muy temprano de mi, my friend. Assobiei com eles as canções que minha mãe me ensinou. I remember everything. Ich minute of that magical moments, me recuerdo. Todavia siento el olor del viento dulce de las gaviotas, quando voavam bem perto de moi. Konichua. Konichua, my friend. Ah! Estou começando a querer destroçar aquela pedra com meus dentes. Vou quebrar os meus dentes. Ele nunca demorou tanto, o animal. Lembro do dia em que apareceram vinte e sete, eu contei. De uma só vez. Vinte e sete animais frente a frente com meus olhos castanhos escuros. Eu podia escolher qualquer um. Escolhi o maior, o mais forte, o improvável. Fiquei calmo. Imóvel, como estou agora. O bicho atravessava minha retina com força. Com sangue. Eu pude ler o pensamento dele. E o pensamento dele era eu. Então eu o enfrentei, mon ami. Com duas lanças que eu mesmo manufaturei. Arremessei uma. Acertei o olho direito do bicho. Ele urrou. Lancei a outra. Foi no coração. Ele urrou mais alto. Até que seus joelhos dobraram e ele desfaleceu a menos de dez metros dos meus dedos. Muito menos. Estava bem perto. Os outros animais saíram correndo em disparada colina acima. Subiram até sumirem. Um a um. Esquartejei cada parte do corpo morto do bicho. Levei até minha cabana. Tirei o coro. Com o coro fiz minha calça, meu gibão, minhas alpargatas e meu chapéu. Antes disso eu curti tudo ao sol. O mesmo sol que ilumina o monte Fujii no verão japonês. Cobri cada parte da carne com o sal esverdeado que brota em todo o canto daqui, desta selva de muralhas sujas. Não me lembro ao certo quantos dias este animal me sustentou. Talvez um ano até. Um ano difícil em que eu só tinha sua carne e nem outra carne eu tinha para me sustentar. Dolce far niente. Amargo regresso sombrio de tempos escusos em que encontrei Janaína. Casei–a uma comigo. Meu estado era deplorável. Janaína me salvou da ressaca moral, cocaína amarela de fezes e lama. Quis morrer mas não morri, ainda. Vou morrer. Muito velho, como meu pai. Na matança. E estarei vibrando, cheio de vida, até que me esqueçam. Eu não mordo. Berlin, talvez? Rio de Janeiro. Sempre. Próspero. Escarlate flúor diluído no cromossoma dos raios lunares antes da alvorada lilás que vi ao teu lado, Janaína. Agora parece que estou perdendo a paciência com as portas fechadas ao redor da mata. C´est la vie comme ça. Ma vie. Rose, red, blue, yellow, azul, off–white transparente furta–cor, arco–íris de chuva que refresca minha alma enquanto a carrego comigo e a sou. My soul. Sou esvanecimento puro se me faltar o ar. Hiperglicêmico, anestésico. Vou embora? Espero mais um pouco? Ele nunca demorou tanto. Nenhuma ave passou. Nem os cachorros, nem gatos, camelos, caramujos em flor vieram hoje. Nunca é assim. Menti. Menti o tempo todo. Amanhã mentirei também. Mentirei até a morte. Negarei até a morte à espera do animal. Mas é o que faço. É o que preciso fazer agora. Ficar de tocaia até que eu ouça seus passos cavalares, até que eu sinta o ar quente de suas narinas, até que eu veja sua fuça e seus olhos amendoados rasgando minha visão. Vou beber o Rio Vermelho. Se não como pelo menos beberei. Beberei tudo, até a sarjeta se for preciso, se for o que o destino me der. Então eu ajoelharei. Erguerei meus braços cansados aos céus e as nuvens esvairão icebergs adentro. E o azul será... Será... O silêncio eterno. Todas as cores num só feixe refletido in my brain. My deep one. Like the sea that we´ll never gonna see, actually. É vero. Veríssimo. E assim eu desisti. Tentei algumas vezes, antes de desistir completamente. Voltei à margem do Rio Vermelho. Olhei tudo o que podia e o que eu não podia eu imaginei. E o animal não veio. Eu esperei, eu fiz tudo o que eu pude para garantir minha sobrevivência no dia de amanhã. E ele não veio. Não veio nada. Nem ninguém. Só existia eu. Então eu voltei para a minha cabana. E lá havia fumaça e cheiro de comida quente, que fez com que meu estômago saísse pela minha boca faminta. Mas eu não estou cansado, my best friend. Really. Sometimes I just d´ont understand why those things happen to me this way. Sinceramente não compreendo. Mas a vida de todo mundo não é exatamente assim? Não somos iguais em qualquer tempo, em qualquer espaço? Somos. Eu tenho certeza absoluta que somos. De uma maneira ou de outra, com o mínimo de consciência compartilhada, c´est tout la même chose. Moi, toi, Janaína e o animal que não deu as caras. Foi esta a razão que fez com que eu decidisse levantar da cama hoje. Eu poderia simplesmente não ter levantado. Poderia se eu quisesse eu poderia fazer exatamente o que eu quisesse. Ainda havia carne imersa no sal. Eu ainda tinha duas semanas até que acontecesse alguma coisa. E alguma coisa sempre acontece. Para o bem, para o mal. Ich liebe dich, eu disse a ela. Wai ni, mon amour. Pardon. Pardon se eu te magoei com o tom de minhas palavras. Eu estava nervoso. Eu juro que eu tento entender o porquê do fluxo das marés, que hora enchem, hora secam, eu juro que tento entender o dia em que os vinte sete animais ficaram paralisados simplesmente me olhando, e hoje, em que ele simplesmente não veio. E me deixou aqui sentado, prostrado, pasmo, pálido, faminto. Foi então que eu vi... Janaína. Nua. Cheirando rosas e glândula de cervo andino e cereja chinesa. Chie chie. Mas eu não desmaiei. Eu poderia, mas resisti. E pensei, pela primeira vez, no meu egoísmo imbecil, na minha cegueira total. E lembrei das guerras nucleares, do meteoro que matou os dinossauros, e dos objetos voadores não identificados que pareciam balões de fogo, aeronaves intergalácticas, ou mesmo uma Fênix made in China. E então Janaína me alimentou, me amamentou. Passou sua mão delicada e sentiu a maciez dos meus cabelos. E sorriu. E fez amor comigo aqui mesmo, nesta cama. Seu perfume ainda está aqui. Pode sentir? Vem dos seus cabelos compridos, encaracolados e fartos. Janaína chorando de saudades de nossa filha, Janaína em seu vestido de pele de carneiro peruano, Janaína descendo as escadarias do Taj Mahal, desaparecendo nas águas do mar de Copacabana, pendurada por uma corda no alto de um edifício. Janaína em todos os lugares, beijando todas as bocas, até a do animal que virá amanhã cedo, de surpresa, assim como a morte repentina de seu filhote recém–nascido. Agora Janaína não está mais aqui. Pelo menos eu não sei onde ela está, se ela está. Gostaria de ter a certeza que ela não morreu. Eu quero acreditar. Quero tanto que eu acredito. Acredito tanto que a vejo atrás de mim, arrancando o punhal de prata e esmeralda que enfiaram em minhas espaldas com o intuito de arrancar–me a liberdade. Janaína fez um curativo em mim. Usou o elixir presenteado pelo avô libanês de meu pai. Até que cicatrizou, cauterizou e desapareceu. E agora estou são. Bem alimentado, calmo, cheio de fé. E finalmente, finalmente meu semblante se ilumina e... Eu... Sorrio... Gargalho baixinho, e vejo as mãos do invisível arrancando lágrimas dos meus olhos, e dos olhos de Janaína. Então eu agradeço. Com o coração reconfortado eu me dirijo à lareira e devoro a carne do animal da semana passada. E estou pronto. Pronto para recomeçar a caçada. Até a vitória. Vitória! Vitória! Vitória! (Ele devora um pedaço de carne. A luz vai abaixando lentamente até ficar totalmente escuro. Ele acende um fósforo.) Só uma coisa que eu esqueci de falar. Essa não foi a primeira e nem será a última vez que o animal não deu as caras. Nem eu sou o único homem no mundo que fica nessa situação, de tocaia, esperando a caça da sobrevivência. Eu também não sou o único homem na face da Terra para quem os vinte e sete animais apareceram. E também eu não sou o único homem a quem Janaína encanta. Eu só queria... Eu só queria mesmo era desabafar. Pronto, desabafei. Boa noite. Sonhe com os anjos. Minha vida é um paradoxo caleidoscópico. O resto é... (Ele apaga o fósforo.) Janaína!...

 

Cena 2

 

LETREIRO: A ÁGUA

JANAÍNA – Por que Sísifo, você mente tanto para si mesmo o tempo todo? Eu lhe conheço bem cafajeste. Você não presta. Nunca prestou. Não acredito em uma só palavra proferida por você. Você tem esse dom, de hipnotizar as pessoas. Sempre teve. Desde o dia em que nasceu em cima de um palco de cabaré, em 1927. Não lembro exatamente o mês nem o dia, mas o ano era esse mesmo. Eu sei por causa da sua idade agora. Está nas últimas. Tenta se reerguer, mas está perdido e depende de todos para tudo. Precisa trabalhar, mas não tem o dom para nada. Tem a inteligência comum. Se se esforçar pode ter a mente iluminada, pode iluminar. Mas não quer se esforçar. Não quer nada. Burla as leis, os homens. Deve tudo a todos e qualquer um. Tem uma doença incurável, correndo por seu sangue. Não conta a ninguém. Por que, Sísifo, não conta a ninguém? Quer dizimar as mulheres e os homens que se aproximam de si, nos becos, corredores, cisternas, esgotos podres da cidade embriagada com teu coração selvagem? O que possui? Por onde começou a vender o que não tem, Sísifo? Teu coração rebelde que vive nos teus quinze anos. As cabeças pensantes dos teus inimigos que conluiam nas madrugadas nos restaurantes nos bebedouros enferrujados do que lhes agrada. As labaredas pulsantes dos navios escondidos nas artérias do teu sorriso infantil. Pensa. Pensa nos fiitoplânctons que comia, nos camarões do deserto escondido no meio do nada. Pensa nas gargalhadas etílicas. Nos torpores e gozos que nunca vieram para sua verve de vida, de amor e morte. Pensa, pensa Sísifo. Nos filmes, nas luzes, no que você não conseguiu fazer. No ódio do tirano perante a inveja do tirano do medo do tirano do que o tirano te deu te tomou te tragou te explorou até o fim em troca de uma miséria ilusória sem fim. Pelo menos até aqui. Não planejou nada, bem sei que não planeja o bom grado o bom vento do teu sono infindável e o desentendimento das tuas ostras e barbatanas do teu joelho escarlate. Pensa no menino que tinha ali, na morte do menino que tinha ali. Pensa na ressurreição do menino que tem nos fios dos cabelos do teu peito e aqui. No cinema do teu perder. Perdição à loucura. Devoção encharcada do olhar contemplativo que me jogara no fim da tarde em meio as plantas musgas do jardim botânico, pensa. PENSA! Volta. Me devolve. Os cavalos, os bodes, o dinheiro do teu pai. Faça–se de idiota da corte do norte, janta, sorri, peida, evacua e perfuma a proparoxítona métrica dos primeiros porvires. Entenda as álgebras, as perguntas e a volúpia do olhar de ressaca da efeba selvagem de alma indígena da minha vulva vestida de veludo verde. Sente o cheiro da glândula do carneiro do alto da montanha, dos olhos do sapo, do rabo da cobra. Sente teu mel. Engole a saliva dos sonhos do desbravador dos teus lábios, das arestas dos teus orifícios e dos líquidos de todas as meninas do seu quarteirão ladrilhado de brilhos natalinos, carnavaliza o tango, Sísifo. Discreta e luminosamente fala. Todas as folhas ao mesmo tempo tudo. Agora volta e quebra os cristais que as velhas esconderam. Quebra os colares, os anéis, os rubis, e as rosas da sala de jantar dos teus parentes mais velhos. Me olha com essa cara de fome por que? Exala os odores calabouços para quem? Constrói, edifica trigais por onde? Com quem esfrega teus cotovelos? Quantas indagações são capazes de multiplicar? Para quem nascem os cisnes brancos? Qual a diferença entre a palmeira asiática e a africana? As savanas lhe protegem das vespas mandarinas. Fez o parto do tubarão fêmea e jogou os filhotes ao índico. Ilhas, tempestades, Sísifo burguês sem calçados. Fibra envelhecida. Punhos rasgados. Cortes perfeitos. Tecidos árabes do século retrasado. Cedro do Líbano e além. Maranhão corrompido e faminto. Sem a máquina vai para onde? E o combustível? Pensa. Diz. Línguas, melodias e vozes búlgaras. Volta. Senta. Pula. Grita. Chora. Morde meus dentes. Bebe minha língua. Deseja os tanques de guerra impedindo seu jardim. Não. Ordena e progride. Volta. Para que floreia a mentira de todas as manhãs? Reza por que continente? Eu sei quem você espera. Meu útero fértil brotou o futuro herdeiro de tudo o que não usufruiu dos cofres reais. Desconfia de mim? Vive de que proteína? Seu corpo está sujo, mas não fede. Seus braços indolores. Seus caminhos. A cor da sua pele. O formato do seu cabelo. Seus olhos. Suas orelhas. Seu corpo. Nada se encaixa. Você não vende a Europa. Você vende a América Latina. Medellin lhe espera de volta. Quem pagou sua conta de luz? Não espere, Sísifo. Ande e não espere. Quanto mais se espera, mais demora o seu ápice. O seu pico. O seu duvidoso porvir. Retrocede um pouco, mas só em pensamento. Olha a parede descascada dos seus anos vindouros. Olha o lodo do tanque do banho da sua vó. Olha o caldeirão de arroz. Sente o cheiro do caldo de caranguejo. A tempestade de areia que cortava seus tornozelos. As frutas doces. O cacho de pitomba. Eu sei quem você espera. Eu sei o tamanho da tua fome. Eu não vou contar para ninguém, pode ficar sossegado. Não vou confessar. Não vou sequer calar. Acorda, anda, trabalha, come, evacua, volta, cultura, qualidade, arte, mercado, valor, ação, moeda, roubo, ganância, prestígio, fama, come. Come bem. Sacia teu estômago e faz teu intestino funcionar. Eu sei quem espera. Quantas horas espera. A ilusão óptica me fascina. Eu olho o contrário das coisas do caminho. Eu sou o convexo. Reflito. Pensa, Sísifo, pensa na macroeconomia da China. Nas invasões bárbaras, no olhar burocrático das banhas da assalariada que julga o valor do seu quilate. Não demora. Devora mesmo. Não deixa sobrar nada neste prato. Se lhe jogarem uma bolinha de gude, devolve com duas granadas. Desaba. Implode. Explode e acende o TNT. Este será o melhor dia da sua vida, homem. Acredita. Olha a cabala. Escaneia os setenta e dois nomes de Deus. Não engorda tanto. A magreza lhe cai bem. Caminhos abertos, boca fechada. Caminhos abertos, boca fechada, caminhos abertos, boca fechada. Há um clarão na caatinga esperando por você, Sísifo. Há milhões de meninos querendo te abraçar, meninas querendo te abraçar. Ricos, pobres, miseráveis. Eles querem te abraçar. E você? Pensa. Acerta o relógio. Calça os sapatos, escova o terno, dá o nó na gravata. Pega a valise. Lava o seu rosto, escova os dentes, perfuma o pescoço, parcela no cartão de crédito a dívida dos ianomâmis. Toca o vinil pop. Dança a ancestralidade. Pensa. Eu sei quem você espera. Eu sei mesmo. Você acha que eu não sei mais eu sei. As margens do rio cristalino, as dunas de areia fina que se movem com o vento e cobrem as casas, eu sei as estrelas piscantes, os cometas, as constelações e as supernovas, eu sei dos compostos químicos e dos cálculos físicos, eu sei das catacumbas dos visigodos, eu sei eu já ouvi falar, eu conheci o cantor de rock que morreu ano passado e também sei quem ele esperava eu também sei que os samurais ficam em silêncio nas piores horas, nos piores lugares, eu sei da geografia do teu corpo, das cores e formas do quadro renascentista, eu sei do objeto raro que veio dos rincões do continente asiático e das grandes navegações. Está tudo aqui na palma da minha mão. Eu falei com os fantasmas. Falei com os gatos e com os leões. Eu não reagi. Eu quis a beleza, a justiça e a bondade. Eu fui até Atenas, eu derramei um balde de lágrimas doces pelo teu bem–estar. Eu queria te chamar de meu filho. Eu queria acariciar os seus átomos. Eu vou lamber sua orelha e fazer você rir, eu vou passar um café. Uma barra de chocolate, por favor, você quer beber o iogurte de ameixa? Onde está seu pai? Por que ele não está aqui? Ele deveria estar aqui. Ele me deixou só. Você me ouve, Sísifo? Consegue distinguir quantas camadas tem meu vestido? Sabe que tenho sete forros? Todos artesanais feitos por mulheres do oriente. Sabe do tráfego aéreo? Eu sei quem você está esperando. Eu sei que o tempo escorreu. Eu tenho apenas uma coisa para ensinar a você. Fora tudo o que eu disse, eu preciso, definitivamente que você saiba que os canários estão a caminho. Eles acompanharão você até o castelo abandonado. Até o que estava escondido e agora se espalha como vírus no sangue infectado. Eu fotografo. Eu leio. Eu escrevo uma linha, eu digito. Pensa. Percebe a densidade do ar? A Groenlândia não é verde. A Islândia não é feita de gelo. É o contrário. Estratégia de guerra. Homem pelo homem. Onças. Peles e dentes que fizeram um tapete e um colar. Não consegui comer a carne. Não como mais defuntos. Pensa, meu amor. Vem cá, me abraça? Coloca sua cabeça no meu ventre. Volta. Pensa. Sente a pele da sua mãe. Deseja. Quando eu estiver morta você falará com uma defunta. Virgem. Santa. Milagrosa. Fica calmo. Não desespere os ponteiros. Tudo no seu lugar. Eu morrerei e voltarei a te proteger. Ninguém lhe fará nem um mal, não agirá de má fé, não lhe causará dano. Eu lhe cobrirei com o manto sagrado. Eu afugentarei o animal. Não se desespere. Tudo voltará. Tudo voltará a ter o som das canções que cantávamos juntos, meu amor. Minha doce criatura. As coisas boas não são planejadas. Sua existência não foi planejada. Você nasceu de noites nuas na orla. Onde está seu pai? Por que ele não veio? Ele deveria estar aqui. Pensa. As coisas estão escritas. Os cafezais, os eucaliptais e as macadamias. Os esquilos, os extraterrestres, os filhotes de golfinho. Estão todos esperando nossos véus. As sedas, os jantares, o baile, as festas na corte. Fomos convidados, meu amado. Iremos além. Eu sei. Quando seu pai chegar. Eu irei com vocês.

SÍSIFO – Não, Janaína. Não.

JANAÍNA – Eu preciso. Você vai me deixar aqui sozinha?

SÍSIFO – Isto é entre eu e ele.

JANAÍNA – Você está preparado?

SÍSIFO – Meu cajado está afiado. Não usarei pólvora. Não errarei. Ele está perto. Sinto o cheiro do seu hálito. Sinto todos os homens que ele também devorou. Ele está furioso. As razões, os medos assolam o pensamento dele. Ele não me ama. Eu vou devora–lo. Eu espero. Seus olhos refletindo os meus olhos. Cara a cara. Boca a boca. Corpo a corpo. Eu não tenho medo. Meus urros quando nasci virarão sussurros quando eu morrer. As ruínas da Europa Antiga, os templos budistas, o peso das navegações. A natureza se voltando contra nós, as manifestações, a fatal falta d´água, eu resisto. A ganância corporativa, o colapso da sociedade de consumo, a tacocracia, a tecnocracia, o apocalipse, os vírus inventados em laboratório. Eu resisto. A inveja, a cobiça, o medo de gafanhotos ao luar. Sou filho da Vida e do Acaso, casei com a Arte, fico com o Teatro, transo com o Cinema, tive um filho com a Literatura, flerto com as Artes Plásticas, BFF da Música, faço programa com a Moda, me prostituo para a TV, sou dj da rave sem fim da internet, a Poesia é minha irmã, amante da Ciência, moro na Arquitetura, namoro a fotografia, irmão da Religião, e vizinho de porta da Morte. O futuro? O futuro, minha doce mamãezinha? O que é o futuro mesmo? O pó? De estrela? O vórtex? A espiral infinita? O sol é um cometa que vaga a setenta mil km por hora em direção a nada... E nós, aqui na Terra, giramos em nós e giramos com ele. Para onde mesmo? E se a economia mundial se desfizesse agora? O que seria de tudo? Shhhhh... Você sente?

JANAÍNA – O cheiro? Sim. Ele chegou. Vai com Deus. (Abraça–o. Beija–0. Entrega–lhe um amuleto dourado. Sai.)

Cena 3

 

LETREIRO: O ANIMAL

O ANIMAL – Pobre infeliz. Pobre desgraçado infeliz, amaldiçoado pelo destino das circunstâncias geopolíticas, econômicas, estéticas e moribundas. Eu te vejo daqui, oh cadáver! És suculento. Teus genes, teus prótons, teus leptões, teus cálculos, a multiplicação dos teus monômios, o quadrado da diferença de dois termos, o produto da soma pela diferença de dois termos. A álgebra abstrata, as ondas e partículas da tua sombra. Eu já te vi. Não haverá escapatória. Não adianta rezar. Não adianta chorar. É uma questão de tempo. É uma questão de espaço. Onde estão as tuas armas, oh natimorto ambulante? Em menos de dois dias tu serás as minhas fezes malcheirosas. Em menos de um piscar de olhos teu coração parará. Pensavas que tinhas atingido o alvo que os outros não viram? Do pó ao pó do pó ao pó do pó ao pó do pó ao pó... GRRRRR... POW! POW! POW! POW! POW! Fica. CRASH! RAPT! BUM! Fica! Finca a sola das raízes dos teus pés no lodo amargo da tua existência inútil. Massacrarei, trucidarei tuas vísceras com meus caninos expostos. Não sobrará nada do teu insignificante existir. Nem a tua consciência desadjetivada. Nem as placas mães, memórias RAMS. Teu disco rígido vai começar a enferrujar. O teu HD deteriorado, a tua CPU afundará nos oceanos. As tuas razões, os teus medos até aqui de nada serviram. A tua coragem de nada adianta frente a frente com minha íris amarela. Para. Para, eu já disse! Acabou. Nem começou a colheita e já acabou. Quem ri por último sou eu. Tua inveja carnificina. Teu complexo de inferioridade corrói teus passos. Era pouco para tuas obsessões? Onde começaram os teus erros a destruírem as causas pútridas e fétidas do teu desespero? Fica. Não se mova. Tua derrocada me fascina. Tua queda me engrandece. Tua falência me regozija. Tu és tão bom quanto a última coisa que tu fizeste. Qual foi a última coisa que tu fizeste? Nada. Tu és tão bom quanto o nada. Desista. Fracassaste. Abandona as metas. Desfaz tua cabana. Derrotado. Perdido. Incapaz. GRRRRRR... A queda do preço das comodities do teu estômago, a diminuição drástica do teu poder de compra, o aumento da carga tributária das tuas insatisfações. Lá estarei eu, à espreita. A tocaia é minha, nunca foi tua, lamento informar. GRRRRRRRR... O sentido do cataclismo rumo à cova onde os vermes serão mais felizes que tuas alegrias inexistentes. O caixa dois da corrupção de quem não te ama. A devoção que destes a quem nunca moveu uma palha por tuas causas. As propinas dos cofres das empreiteiras que edificaram os teus alicerces frágeis. Chegou a tua hora, Sísifo. Fica. Finca tua cabeça no lamaçal das surdinas amargas que putrificam tuas hemácias e o CD4 da tua luta inglória. De nada adiantou o teu investimento nas marés turbulentas que tentaste ultrapassar. Lavei tuas finanças e queimei o que restava dos teus centavos. Roubei teus suspiros, teus desejos foram esvaziados, a vontade de crescimento e as conquistas encerraram–se nas sujeiras encrustadas nas entranhas das minhas unhas virulentas. O esquartejamento dos teus projetos, as tuas licitações ineficientes provocam–me cócegas. A condenação do ar que tu respiras, ainda, é iminente. Eu te acuso. Eu sou a polícia que te levará ao calabouço dos teus últimos dias. As tuas feridas hemorrágicas me excitam. A queda dos teus cabelos me engrandece. Eu sou teu carrasco. Eu deceparei tua cabeça com a força dos meus dentes afiados. Eu quebrarei os teus ossos. Eu incendiarei tuas posses. Eu afogarei tuas narinas na urina dos mendigos usuários do crack. Eu roubarei o dízimo que parcelastes em vinte e sete vezes. Eu edificarei templos de ouro e turmalinas vindas de Jerusalém. Tudo virá a mim, após teu último suspiro. A tua inocência benfazeja engordará meu dedo indicador. As minhas bochechas inflarão com a tua agonia. Nenhum passo! Eu controlo teus movimentos com o meu olhar. Eu fuzilo as batidas do teu coração roto. Taquicardia acelerada com a minha presença magnânima. Evacuarás nas tuas calças ao me olhares. Perderás o controle dos teus músculos com o som da minha voz. Eu sobre ti. Eu sobre teu último raio de luz. Os buracos nas paredes dos barracos das favelas, o beco sem saída do tiroteio da faixa de Gaza, a execução dos traidores de guerra me alimenta, mas não saciam a fome que tenho do líquido das tuas córneas. Não tanto quanto a carne da batata das tuas pernas atrofiadas. Vou devorar o teu fígado, Sísifo. Vou tragar o ar nauseabundo da tua respiração e sufocar teus pulmões com meus próprios dedos, vou cravar minhas unhas na tua jugular até expelir todo o sangue assassino das tuas veias medicadas. Vou destruir a tua conta bancária. Serei a tua ruína financeira fatal. Vou deteriorar o teu talento e a vontade de seguir na estrada que te leva do nada ao nada. No meio do nada lá estarei contemplando o teu lento fim. Não ressuscitarás. Não há a menor chance. Não há mais conexão. Cortei a luz que abastecia tua casa. Exterminei o alimento da tua geladeira. Não há mais nada atrás. Extingui tua memória. Extirpei a centelha de esperança que havia no teu acordar. Perderás todos os concursos. Não serás mais convidado para jantares festivos de confraternização pequeno burguesa, Sísifo. E depois de tudo, serás esquecido. A tua prole e a prole da tua prole seguirão com teus anseios adolescentes e também virão até mim. Não há escapatória. Dê adeus à fartura. Despeça–se do sol. Proibido. Não. Onde estão teus documentos?

SÍSIFO – Eu não tenho documentos.

ANIMAL – Nem um pio!

SÍSIFO – Eu nada abandonarei. Nem as braçadas até o outro lado da ilha.

ANIMAL – Pecaste. És culpado. O inferno e a loucura te esperam. Este é teu único agora.

SÍSIFO – Não. Não! NÃO! Um milhão de vezes não!

ANIMAL – GRRRRRRRRRR... O teu castigo. A tua velhice. A perda do brio, do viço da tua pela. Nem um passo. Volta. Retrocede. Abandona tuas armas. Não me contraries, Sísifo. Tu és minoria. Este é o sacramento a ser seguido. Eu explorarei tuas terras. Eu te privarei de glórias.

SÍSIFO – Eu estou condenado à sobrevivência. Não basta?

ANIMAL – GRRRRRRRRR... Seco o teu suor, a tua saliva, o teu banco de espermas. Seco a tua chuva e as tuas lágrimas. Todos te darão as costas. Eu roubarei os teus pertences de prata. Eu afanarei o teu alimento. Eu me apossarei da tua fé. Sugarei os teus pensamentos frutíferos. Só restará areia e montanhas de areia sobre areia sobre areia. Vagarás no deserto escaldante com os pés desnudos, sem filtro solar. Terás alucinações maléficas e nunca mais terás raciocínio lógico nem tampouco imaginação. Está tudo derretendo. Os edifícios, os canos que levam os excrementos humanos até o rio e matam os peixes, os fios de cobre. Tudo derretendo com a minha presença. O veneno da minha língua escorre pela minha boca. É preciso expeli–lo imediatamente. Chegou a tua hora, pobre moribundo. Abro minha bocarra. Engulo tua cabeça. Não existirá mais Sísifo. Nenhum aplauso acalorará o teu ego. Nenhum elogio. Nem tampouco um emprego. Nenhum salário pagará tuas contas. Nenhum quinhão te levará até a Califórnia. Somente doenças. Tu já exististe. Agora é minha vez. A civilização é uma farsa!

SÍSIFO – Você não entendeu nada! Eu carrego a pedra até o alto da montanha com prazer. Eu empurro a pedra do alto da montanha com prazer. Meu fardo é minha alegria! O amanhã virá. Eu morrerei velho. Eu morrerei trabalhando. Eu morrerei feliz.

ANIMAL – É sua condenação, não é um prazer. Não haverá amanhã.

SÍSIFO – É meu trabalho.

ANIMAL – Não. Seu trabalho é a sua escravidão.

SÍSIFO – Não, meu trabalho é a minha paixão. Meu trabalho é a minha alegria.

ANIMAL – É vazio. É absurdo. É inútil.

SÍSIFO – É meu prazer.

ANIMAL – É a sua dor. É efêmero.

SÍSIFO – É eterno. É infinito. (Levanta sua lança. Mira no animal.)

ANIMAL – Chega! Meu veneno queima minha própria boca, eu regurgito o líquido vermelho da minha própria morte. Eu bebo o amargo da minha própria bílis. E regurgito. Fluxo e refluxo do mal. Até que a lança de Sísifo perfure minha garganta. E eu, ora, sou eu quem não existe mais. GRRRRRR... Ah... Ah... Eu bebo meu próprio fim? (Ele morre com a lança de Sísifo em seu pescoço.)

 

Cena 4

 

LETREIRO: O PARAÍSO

SÍSIFO – Todo dia é assim. Eu vivo há décadas assim. Os primeiros pardais levam o alimento da manhã para suas crias. As nascentes dos riachos banham meus pés calejados. Dispo–me nas cachoeiras, grito aos sete ventos as melodias gregorianas do recomeçar. Volto a mim. Floreio as vielas com begônias e lírios. Perfumo o horizonte com o hálito doce das abelhas. Há uma vastidão de galáxias à minha frente. Os oceanos inexplorados onde eu posso flutuar, os cardumes que me acompanham até a carcaça do navio de 1927 me deixaram uma saudade acolhedora. Afaguei os cílios de todos os peixes. Um por um. Venci as marés, aportei nos icebergs do Norte e comemorei com os pinguins a visão da chuva de meteoros que nos aguardava. Fiquei, finalmente calmo. Subi os vales, desci aos rincões do sertão até que encontrei três filhotes de dinossauros dourados. Juntos lemos as escrituras sagradas dos egípcios e finalmente cantamos, em uníssono, os hinos do Rio Vermelho. Fiquei calmo por séculos. Varri a frente da minha cabana, acendi meu charuto cubano e tomei o chá de ervas aromáticas do Omã. Finalmente sorri sem medo de prosseguir a viagem. Há um esplendor em meu peito que me eleva. Todas as famílias estavam felizes naquele dia. Os violinos, os violoncelos, e o piano de todas as casas tocavam a mesma música. Todos dormiam. Por um instante toda a humanidade sonhava o mesmo sonho. O mesmo “Transe remix #0”. Foi assim que eu vim parar aqui. Aqui é bom. Eu me sinto bem. Na verdade, eu me sinto muito bem. E sei que você também se sente assim. Todo dia é assim.

(Janaína entra, cobre Sísifo com seu manto. Sísifo joga a caça do dia aos seus pés. Ela e o beija na boca. Sísifo sobe a escada com a esfera nas mãos.)

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